O Ano da Fé. Entre a narrativa e a poesia

 

Era meio-dia quando Bento XVI, aparecendo na janela da cidade e do mundo, disse que gostaria de abrir uma porta. A «porta da fé», como mais tarde lhe chamou, ao evocar Act 14, 27. Passavam poucos minutos da missa conclusiva de um encontro sobre a nova evangelização e, nesse espírito, delineou as coordenadas para o Ano da Fé.

«Considero que, tendo transcorrido meio século desde a abertura do Concílio, ligada à feliz memória do beato Papa João XXIII, é oportuno recordar a beleza e a centralidade da fé, a exigência de a reforçar e aprofundar a nível pessoal e comunitário, e fazê-lo em perspetiva não tanto celebrativa, mas antes missionária, precisamente na ótica da missão ad gentes e da nova evangelização».

É interessante esta perspetiva. Uma fé que se recorda, reforça e aprofunda, não à luz do candeeiro do escritório ou assinando um livro de honra, mas abrindo a porta da Igreja para ver quem está do lado de fora. Podemos dizer de outro modo. Cristo é a «porta» (Jo 10, 7) a necessitar de ser mostrada à cultura contemporânea. Para muitos, a Igreja deixou de ser pertinente. Deus é algo ambíguo. Mas a humanidade de Cristo ainda fascina.

Quando Bento XVI diz que é necessário aprofundar a fé, não tem em mente a fé como um mero «objeto» a ser estudado. Nem sequer pode ser vista como um objetivo pastoral a ser alcançado. A fé é o dom que Deus nos concedeu para O reconhecermos e que nos permite participar da Sua vida divina. Um dia a fé não mais será necessária (Jo 6, 45: «serão todos ensinados por Deus»). Precisamente quando O virmos face a face.

É, todavia, um mistério a razão pela qual «muitos dos nossos contemporâneos não percecionam esta íntima e vital ligação a Deus, ou até a rejeitam explicitamente» (GS 19). Estes contemporâneos têm vários nomes. São os ateus, os agnósticos, os que procuram Deus. Mas também aqueles que vivem um cristianismo formal. Aqueles que recitam sem meditar, que consolam sem chorar. Por diversas vezes, o Santo Padre alertou para o facto de darmos a fé por garantida, quando na verdade isso pode não ser uma realidade.

O que é então central neste Ano da Fé? Formulando assim a pergunta, podemos até alinhavar algumas respostas. Mas serão incompletas. A pergunta é: quem é central neste Ano da Fé? E a resposta é Jesus Cristo. Diz Bento XVI que «ao início do ser cristão, não há uma decisão ética ou uma grande ideia, mas o encontro com um acontecimento, com uma Pessoa que dá à vida um novo horizonte e, desta forma, o rumo decisivo» (DCE 1).

Uma nova pergunta. E que modalidade ou gramática escolher para encontrar Cristo ou então introduzir um outro no Seu mistério? Atendendo à sensibilidade do mundo atual, diria que é algo entre a narrativa e a poesia.

Analisando com atenção o discurso dos cristãos, incluindo sacerdotes, daremos conta que uma parte significativa tende à exortação moralista ou à afirmação pela negativa. «Temos de... Não devemos...». «Nós não somos...». Mas, aquilo que um cristão possui de mais precioso é o facto de ter sido gerado para a narrativa do dom. O nosso ser é por natureza testemunhal (Antonio Rosmini). O rosto testemunha o estado de espírito, as ações testemunham as opções fundamentais e o «eu» testemunha a história e aqueles que o precederam. É uma linguagem completamente diferente.

Existem duas coisas irresistíveis. A força da palavra e a ternura do olhar. É todo um corpo que narra uma história ou experiência singular. Este corpo pode ser o meu, o teu. Pode até ser o corpo eclesial. Talvez seja até o corpo de Paulo «que leva as marcas de Jesus» (Gl 6, 17), que são cicatriz do zelo apostólico e sinal de propriedade. Há uma diferença entre dizer «temos de amar a Deus porque Ele nos amou primeiro» e dizer «foi o Pai que me ensinou a amar».

Para os curiosos de Deus, a narrativa expressa-se no acolhimento, no espaço que se gera entre o «eu» e o «tu» para que possa existir um «nós». A narrativa colhe a arte de transportar o ouvinte e o narrador para o «narrado». Na narrativa desaparece o narrador. Fica o narrado. Cristo.

Para as comunidades cristãs, a narrativa manifesta-se na disponibilidade de estar na estrada, de ser significativo para a vida de alguém nos ambientes que lhe são próprios (EN 17-19). Manifesta-se na sensibilidade e respeito à palavra escutada e credo professado. Manifesta-se na memória, na celebração e no mistério daquilo que não é contado.

A gramática para encontrar Cristo é também a poesia. A poesia é a imagem do esforço humano necessário para encontrar Cristo e do trabalho que é exigido às comunidades cristãs para promoverem ambientes e tempos onde nasça a disponibilidade para o imprevisível. A poesia é a coragem de inventar palavras para narrar o inesperado.

É curioso o quanto a cultura contemporânea está desperta para a imagem. Hoje, um bloco de texto pode até mesmo ser insuportável se não for cruzado com algumas imagens. Basta comprar uma qualquer revista para o comprovar. Naturalmente existe o perigo da idolatria da imagem. Mas daí o contributo da poesia. Por um lado, é uma das linguagens mais eficazes para ver «para lá de», e, por outro lado, combate a idolatria. Ela fala daquilo que os olhos não veem, preserva o mistério, mas sabe que se trata de algo real.

O Ano da Fé tem, portanto, o potencial necessário de proporcionar a todos os cristãos e pessoas de boa vontade um belo e significativo encontro com Cristo. Entre a narrativa e a poesia.

 

                                                                                                                                                                        Tiago Freitas

 

 

 

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